UMA UNIVERSIDADE QUE MORA EM APOSENTOS REAIS 


                       
                                                                                             Foto de Vitor Murta

Com pouca e episódica concorrência, a Universidade de Coimbra teve, até às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o exclusivo do ensino universitário no país

A história da Universidade de Coimbra (UC) confunde-se não apenas com a da cidade onde foi instalada em 1308 por D. Dinis, e à qual regressou definitivamente com D. João III, mas com a própria História de Portugal. E não apenas por motivos simbólicos, como o de ocupar um edifício, o Paço das Escolas, que viu nascer boa parte dos monarcas portugueses da primeira dinastia, mas porque formou, durante séculos, as elites que foram governando o país.

Não surpreende, portanto, que os momentos de viragem na história da Universidade de Coimbra correspondam, grosso modo, aos períodos de transformação da sociedade portuguesa, da revolução renascentista às décadas de domínio filipino, da reforma pombalina às lutas liberais, da implantação da República à ditadura do Estado Novo e ao atual regime democrático. Já na sua relação com a cidade de Coimbra, talvez o testemunho mais imediato e impressionante da relevância da Universidade seja o da quantidade de edifícios emblemáticos cuja história se cruza, de modo mais ou menos direto, com a da própria instituição, a começar, claro, pelo Paço das Escolas, que, antes de o ser, foi o Paço Real, e ainda antes disso fora uma fortaleza, a alcáçova islâmica de Coimbra, restaurada após a reconquista pelo alvazir moçárabe Sesnando. Esta circunstância de habitar um palácio real é uma das suas maiores singularidades, como é o facto de ter sido, durante largos períodos, a única universidade do país, com o exclusivo de formar especialistas em disciplinas tão cruciais para a governação como o Direito Civil.

A candidatura da universidade a património mundial inventaria nada menos do que 31 edifícios, 21 na Alta Universitária e mais uma dezena na zona da Rua da Sofia, na Baixa, aqui incluindo o Mosteiro de Santa Cruz e os vários colégios crúzios que, na primeira metade do século XVI, constituíram uma espécie de pioneiro campus universitário. Estendendo-se hoje por vários pólos e acolhendo, nas oito faculdades, cerca de 20 mil estudantes, a UC integra o Grupo de Coimbra, ao qual deu o nome, uma associação das mais antigas e prestigiadas universidades europeias, algumas delas de fundação ainda mais recuada do que a portuguesa, como as de Bolonha, Paris, Oxford, Cambridge ou Salamanca.

Entre Lisboa e Coimbra

O nascimento da universidade portuguesa costuma datar-se de 1 de Março de 1290, quando D. Dinis assina o documento Scientiae thesaurus mirabilis (conhecido como "documento precioso"), que cria o Estudo Geral, depois confirmado, em Agosto, pela bula De statu regni Portugaliae, do Papa Nicolau IV, que habilita a nova instituição a conceder graus em Artes, Direito Canónico, Leis e Medicina. Já em Novembro de 1288, um conjunto de altas figuras do clero (incluindo o prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra) pedira autorização ao Papa para que parte das rendas de vários mosteiros servisse para financiar um Estudo Geral em Lisboa, sugestão que, faziam saber os signatários, fora anteriormente endereçada a D. Dinis, que a acolhera benignamente.

Mas, seja qual for a data em que queiramos iniciar esta história documental da criação da universidade portuguesa, convém reter que só a posteriori ela diz respeito à Universidade de Coimbra. Até 1537, quando D. João III a instala definitivamente em Coimbra, a universidade estivera radicada bastante mais anos em Lisboa do que junto ao Mondego. Nasceu em 1290 na zona do atual Largo do Carmo, em Lisboa, e só foi transferida para Coimbra em 1308, ainda no reinado de D. Dinis, que lhe oferece um edifício contíguo ao Paço Real, sensivelmente onde hoje se ergue a Biblioteca Geral da UC. Sabe-se pouco desta primeira universidade coimbrã, que teria apenas seis docentes e meia centena de alunos, e que durou trinta anos, até ser de novo transferida para Lisboa em 1338, agora por D. Afonso IV. O rei queria passar mais tempo em Coimbra - devem-se-lhe obras de monta no Paço Real - e precisava que os estudantes desocupassem as casas adjacentes ao palácio para nelas instalar os seus oficiais. Em 1354, a universidade estava de novo em Coimbra, mas de novo por pouco tempo. D. Fernando volta a mudá-la para Lisboa em 1377, e desta vez ali ficará por 160 anos, até D. João III, em 1537, a fixar definitivamente em Coimbra. Se descontarmos a universidade jesuítica que existiu em Évora entre os séculos XVI e XVIII, a UC foi, desde então e até ao início do século XX, a única universidade do país.


                                   

De D. João III a Salazar


A história moderna da UC começa, pois, no reinado de D. João III, num tempo de afirmação do Renascimento português. O monarca distribui os estudos universitários pelo Mosteiro de Santa Cruz e respetivos colégios - confiando-lhe o ensino das Artes, das Humanidades, da Teologia e, mais tarde, também da Medicina - e pelo Estudo Geral, responsável pelas faculdades de Leis e Cânones (Direito Civil e Canónico) e pelas disciplinas de Matemática, Retórica e Música. Para os Estudos Gerais nomeou um reitor, Garcia de Almeida, cujo palácio ainda alojou durante algum tempo as diversas faculdades, até que o monarca as decidiu concentrar no próprio Paço Real. Numa simbólica confirmação da estratégia de recuperar a universidade para a Coroa, esta ia assim ocupar a casa que não apenas vira nascer e morrer os reis da dinastia de Borgonha, como fora cenário das cortes de 1385, onde o talento argumentativo de João das Regras tinha levado à aclamação de D. João I, fundador da dinastia de Avis.

Em 1597, a UC, que até aí pagava renda pela utilização do Paço, comprou o edifício a Filipe II (I de Portugal) e rebaptizou-o Paço das Escolas.

A candidatura da UC a património mundial dá natural destaque a este edifício, verdadeiro coração da universidade, e que inclui, entre outros elementos, a Biblioteca Joanina, possivelmente o mais notável exemplar europeu de uma biblioteca universitária barroca, a Torre da Universidade, a Porta Férrea, a Via Latina, a Escadaria de Minerva ou a capela manuelina de S. Miguel.

Depois da construção dos colégios ligados ao Mosteiro de Santa Cruz, da criação do Colégio das Artes e de outras intervenções lançadas no tempo de D. João III, a grande transformação que se segue, quer ao nível do ensino, quer no que respeita à configuração física da UC, ocorre com a reforma pombalina do século XVIII. A UC é então divida em seis faculdades - Direito Civil, Direito Canónico, Medicina, Matemática, Teologia e Filosofia - e criam-se novos equipamentos, como o Laboratório Químico, o Gabinete de Física Experimental, a Imprensa da Universidade ou o Jardim Botânico. Pombal acaba ainda com a Universidade de Évora, gerida pelos jesuítas.

Após a revolução liberal, são inauguradas em Lisboa e no Porto escolas politécnicas, médico-cirúrgicas e de Farmácia, mas Coimbra só perderá realmente o exclusivo universitário já em plena República, com a criação, em 1911, das universidades de Lisboa e do Porto.

A última grande transformação que as instalações da UC sofreram coincidiu com o Estado Novo, quando foi criada uma nova cidade universitária na Alta, projetada pelo arquitecto Cottinelli Telmo. O primeiro e mais emblemático momento dessa nova arquitectura que o regime Salazarista impôs à UC - e que esta candidatura a património mundial não esquece - é o edifício da Faculdade de Letras, concluído em 1951. Ao longo dos anos 50 e 60, foram construídos vários outros edifícios, como o da Biblioteca Geral, o da Faculdade de Medicina ou o da Secção de Matemática, cuja inauguração se tornaria célebre por ter servido de cenário ao primeiro momento do que veio a ser a crise académica de 1969.

Artigo de Luís Miguel Queirós
(https://www.publico.pt/autor/luis-miguel-queiros)
Jornal Público 


                                                                                               

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