PRETO É, GALINHA O FEZ?
Todos os alunos que passaram
pela Academia sabem que o portão do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra
(UC) é a resposta certa à adivinha tradicionalmente contada em Coimbra «Qual é
a coisa, qual é ela, preto é, Galinha o fez?». Com efeito, o magnífico e negro
portão é obra de um serralheiro Galinha, assinado numa pequena placa de ferro
fundido, onde se lê «M(anuel) B(ernar)des Galinha o fez em Coimbra.» Mas, em
boa verdade, qualquer grade ou varanda de ferro, das muitas que existem na
cidade e atribuíveis à família de ferreiros de apelido Galinha também podiam
ser uma resposta acertada à adi ‑ vinha, se acaso fossem tão pretos e tão
conhecidos como o portão do Botânico. A Biblioteca Geral da UC possui também um
prelo tipo ‑ gráfico em ferro forjado, adquirido antes de 1874 para imprimir os
catálogos de novas aquisições, até agora conhecido como «prelo do Galinha», por
ostentar uma placa de bronze onde se lê: «M. Galinha em Coimbra.» Instalado durante
dezenas de anos no piso térreo da Biblioteca Joanina, mal conservado e
incompleto, foi recentemente restaurado para ocupar um lugar de evidência no
renovado átrio do edifício da Biblioteca Geral, uma vez libertado da venda de
bilhetes aos turistas, por meritória ação do Magnífico Reitor Amílcar Falcão. O
restauro do prelo obrigou ao seu estudo mais aprofundado, que confirmou a
profunda ligação deste objeto com a cidade e com a Universidade, como já
tínhamos insistido nas páginas da Rua Larga, n.º 23 (janeiro de 2009). Joaquim
Martins de Carvalho, jornalista e historia ‑ dor da imprensa em Coimbra, fá-lo
remontar a 1845, quando teria sido executado por Manuel Bernardes Galinha (1810
-1864) para equipar a tipografia de um jornal que nunca se chegou a fundar e
que se teria chamado Conimbricense. Falhado o projeto desse periódico,
impulsionado pelo industrial Augusto Valério Ferreira Pinto Basto (1807
-ca.1902), o empreendedor, e o Doutor António Luís de Sousa Henriques Seco
(1822‑1892), o indigitado diretor do mesmo, venderam o prelo, em 1847, para com
ele se fundar outro jornal (O Observador), no qual Joaquim Martins de Carvalho
estava pessoalmente envolvido. E por causa desse envolvimento, não há como
duvidar da origem que ele atribui ao prelo, pois saberia bem a quem o tinha
adquirido para fazer a Imprensa do Observador, e sabe ‑ ria melhor a quem o
tinha vendido depois de ter deixa‑ do de usá-lo para imprimir: sem uso nos
últimos anos deste jornal, colocado no Colégio da Trindade, foi vendido em 1866
ao impressor Francisco dos Santos e Silva (ca.1820‑1883), que por sua vez o
haveria de ceder à Biblioteca da Universidade, por volta de 1873 ou 1874.
Resumidamente, esta era a história bem conhecida do prelo, que devíamos
integralmente às cuidadosas indagações de Joaquim Martins de Carvalho. A par
dos trabalhos de restauro de 2019, tentámos detalhar ainda a história da
máquina, desde que se encontra (há quase 150 anos) na posse da UC e precisar,
da melhor forma possível, os escassos elementos biográficos disponíveis até
agora sobre Manuel Bernardes Galinha e Augusto Valério Ferreira Pinto Basto, personagens
essenciais desta história. Foram pesquisas de arquivo para as quais contámos
com a ajuda preciosa da Mestre Maria Beatriz Matos França. Do ponto de vista da
engenharia tipográfica, o prelo, até agora dito do Galinha, é uma máquina
singular, desde logo por ser em ferro forjado e não em ferro fundido, como são
todos os prelos metálicos industriais, desde o início do século XIX. Tão singular
é ele que, ao contrário das velhinhas máquinas de madeira da Imprensa da UC,
nem foi cobiçada pelo Museu da Imprensa quando este começou a constituir-se:
por ser tão único, e «inclassificável», não terá, então, parecido útil para
explicar a evolução dos prelos tipo‑ gráficos na exposição de caráter didático
que se que‑ ria construir no Porto. Do ponto de vista do design, o prelo do
Galinha apre‑ senta soluções que os historiadores da tipografia chamam
«Stanhopean principles», por andarem atribuídas aos desenhos de Charles Mahon,
3.º Lord Stanhope (1753-1816), divulgados a partir dos inícios do século XIX:
construção inteiramente metálica, pressão aplica‑ da por um inovador sistema de
alavancas compósitas e um batente para impedir que o entusiasmo do impressor
sobrepressionasse o quadro da prensa. E aqui pode levantar-se a dúvida: onde
teria o nosso Galinha — que não era um fabricante de prelos — encontrado em
Coimbra um modelo com estas características para copiar? Ou, por outras
palavras, como justificar que uma máquina produzida em 1845 mostre características
já velhas de (pelo menos) 40 anos, sem apresentar nenhum dos melhoramentos
entretanto introduzidos nos prelos tipográficos? Uma explicação possível e,
porventura, a mais simples é a de que ele não tenha sido fabricado em 1845, que
seja mais antigo e, portanto, que não seja do Galinha. Apesar de intensamente
buscada, não se encontrou documentação da encomenda original de Augusto Pinto
Basto ao ferreiro de Coimbra; essa, em boa verdade, permanece apenas como a
«narrativa» do vendedor. Mas uma narrativa que não ofereceu dúvidas a Martins
de Carvalho, sabendo ele muito bem que a máquina tinha a «assinatura» de M.
Galinha. Para um homem que tanto sabia de tipografia, talvez a seus olhos bastasse
ser um produto artesanal, feito por um ferreiro de portões e de varandas, para
explicar-lhe as singularidades. Quando o comprou, importante para ele é que
funcionasse bem — e isso era garantido. A hipótese que explicaria todas as
particularidades deste prelo é que Manuel Galinha se tenha limita‑ do a
consertar e substituir algumas peças de uma máquina mais antiga comprada
algures por A. Pinto Basto. Este capitalista tinha sido diretor da fábrica de
vidros e porcelanas da Vista Alegre e, antes disso, tinha, como muitos outros
liberais, vivido no exílio, em Inglaterra e em França. Enquanto diretor da
fábrica, sabemos que foi a Sèvres (e a Meissen, na Alemanha?) estudar as pastas
da porcelana, e que tinha sido ele a procurar e a contratar os mestres
ceramistas estrangeiros que deram nomeada à fábrica de Ílhavo. Estaria, pois,
na posse de todos os necessários contactos europeus para localizar e importar
uma máquina própria para poder imprimir o jornal que queria fundar, em Coimbra,
em 1845. Para Robert Oldham, historiador dos primeiros prelos metálicos
(europeus e americanos) e consultor científico do restauro do nosso «prelo dito
do Galinha», o que hoje temos em Coimbra podia bem ser um dos prelos que
Wilhelm Haas (filho) melhorou, por volta de 1784, partindo do protótipo criado
pelo pai, em 1772. Até hoje, não se conhecia nenhum sobrevivente destes
fabricos, concebidos em Basileia, forjados em Zinsweiler (na Alsácia) e
vendidos, pelo menos, na Suíça e na Alemanha. Mas as notícias que Wilhelm
Haas-Decker (1766-1838) nos deixou das melhorias por ele introduzidas coincidem
totalmente com as características do prelo de Coimbra. Qualquer que seja a sua
origem, a máquina que temos hoje é extraordinária: se acaso foi uma criação de
Manuel Bernardes Galinha, é única, pois não se conhece mais nenhum prelo
funcional em ferro forja‑ do na Europa. Se Galinha apenas consertou uma velha
máquina de Wilhelm Haas, e deixou a sua placa para atestá-lo, teremos um prelo
a que poderíamos chamar «Haas-Galinha» e que será, tão somente, o mais antigo
prelo metálico conservado no mundo, quase 20 anos anterior aos primeiros prelos
Stanhope.
A. E. MAIA DO AMARAL
Diretor-adjunto da Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra
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