O TEMPO DA UNIVERSIDADE…
...tem mais do que um modo.
Primeiro, é o tempo curto, que se mede em anos, das tarefas quotidianas que
preenchem a vida do estudante: o sino do relógio que toca para as lições (às
sete e meia até domingo de ramos, às seis e meia, daí em diante), meio quarto
de hora depois dos campanários da cidade, o assueto a meio da semana, a leitura
do professor que é preciso captar e fixar por escrito na apostila, o ir à feira
comprar os frescos, ao açougue a carne e o peixe, o habitar em grupo — com a
ama a moderar a ritmo dos dias, o moço de recados e a lavadeira, auxiliares
indispensáveis —, os ritos iniciáticos, os convívios, as ansiedades que
precedem os exames, as disputas das conclusões e a apressada preparação (de um
dia para o outro) das lições de ponto, a alegria dos graus conseguidos; de
permeio, as viagens: a inicial, tímida, para Coimbra, e as outras, no vai e vem
das férias. Foram mudando as circunstâncias — que os tempos não são sempre os
mesmos — e a apostila fez -se sebenta, depois apontamentos; os códigos e as
sumas deram lugar aos compêndios e depois às listas bibliográficas; as disputas
cederam o lugar às dissertações mais ou menos longas; acabou o assueto e veio o
fim de sema ‑ na; as viagens multiplicaram -se… Contudo, se olhado sob o ângulo
do percurso biográfico de cada estudante (e em todas as épocas), este tempo
curto avoluma-se e torna-se imensamente grande — pela marca indelével que grava
no espírito, pelos laços afetivos que tece e, muito mais, pela transformação
que opera: o graduado educou o olhar com que interpreta o mundo e a sociedade e
enfrenta os desafios da vida munido do reconhecimento formal de competências
que lhe permitem ser parte ativa na construção e no ordenamento da cidade.
Depois, há um tempo médio, o dos professores, que se mede em vidas, em duração
de carreiras. De acesso difícil — implicando muitas vezes pacientes esperas —,
eram normalmente engendradas no seio de poderosas instituições protetoras, como
os colégios; excecional ‑ mente, sobretudo em momentos de reforma, emanavam
diretamente da vontade do poder político que, em todos os casos e em última
análise, decidia admissões e progressões, jubilava, reconduzia, aposentava ou
exonerava. Muitas dessas carreiras ficaram confinadas ao múnus universitário;
muitas outras, sobretudo de juristas, fizeram dele uma etapa transitória e
trampolim para o exercício de poderes mais amplos. Estatutos e programas
delimitavam as áreas do saber e estipulavam os textos que constituíam a base do
ensino: aos professores, contudo, ficou sempre a incumbência de aclarar e
explicitar, escolher o que de mais relevante devia ser comunicado, acrescentar
o que «por seu talento e trabalho» pudessem entender e alcançar, serem inventores
e autores, incorporarem o que de novo se fosse descobrindo, associarem
estruturalmente docência, investigação e publicação. Cabia-lhes, além disso, um
poder único: o de aferir e julgar, promover ou reter. Joeirar. E articulavam ‑
-se com o poder régio, durante séculos, informando do mérito final dos
graduados em Direito (e depois de todos os graduados), critério importante para
o acesso a carreiras futuras, ou mesmo dirimente para o ingresso na
magistratura. No âmbito doméstico, e através dos conselhos e congregações,
deliberavam sobre os aspetos científicos, pedagógicos, administrativos,
económicos, e constituíam o núcleo decisor de uma Universidade que primeiro foi
senhorial e depois geriu o hospital, os gabinetes, os museus. Há ainda o tempo
longo, que se conta por séculos, no qual se inscreve a missão perene da
Universidade. A formulação dos Estatutos de 1772 é, a este respeito, exemplar:
a concessão de graus, além de ser «testemunho público e significação autêntica
da habilitação para o magistério», é também a «regra» pela qual os «supremos
poderes espiritual e temporal» se governam e regem «no provimento das
dignidades, benefícios, ministérios e empregos», os de «maior gravidade e
importância». Já anteriormente, os Estatutos Velhos afirmavam que na
Universidade se professavam «as ciências necessárias para o bom governo e conservação
da república cristã»; e em 1911, na radical mudança de regime, se lhe atribui
«um tríplice fim: fazer progredir a ciência […]; ministrar o ensino geral das
ciências e suas aplicações […]; promover o estudo metódico dos problemas
nacionais […].» Ou seja, no tempo longo, sempre se considerou que a apropriação
do saber, mais do que a promoção individual, era uma preparação para servir; e
que a Universidade era um instrumento: de transmissão, mas também — e sempre
mais — de criação e inovação que se projetaria em frutos de bem comum. É nesta
linha contínua que se inscrevem as reformas — a humanista, a iluminista, a
republicana —, momentos de ajustamento e superação, que, ao ultrapassarem-no,
não destroem o legado anterior. E é por isso que, conjugando todos os modos do
seu tempo, a Universidade se constitui como a grande e permanente placa
giratória para a qual convergem de todo o Reino e do Império os que buscam o
saber — e também o poder que lhe está inerente —, e donde se disseminam pelo
Reino e pelo Império para moldarem a política e a sociedade.
FERNANDO TAVEIRA
Professor associado com
agregação aposentado do Departamento de História, Arqueologia e Artes da
Henrique Patrício Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Revista Rua Larga
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