Perspetiva histórica da República de Coimbra


Artur Ribeiro *


A “República de Coimbra” é, talvez, a mais antiga e genuína das instituições universitárias portuguesas, reportando-se as suas raízes à época medieval e ao ato de estabelecimento de “Estudo Geral” em Coimbra.

Do diploma régio de 15 de Fevereiro de 1309, inspirado na “Charta Magna Privilegiorum” que consagra os vastos privilégios e regalias concedidos aos escolares, ressalta a sentida preocupação de D. Dinis em prover ao alojamento e ao abastecimento em víveres dos estudantes e mestres da Universidade. Em Coimbra, como em grande parte dos centros universitários da Europa Medieval, à escassez de casas para arrendar acrescia a relutância dos proprietários em arrendá-las aos estudantes por uma “renda justa”.

A solicitude dos monarcas para obviar a tais carências está bem patente nos muitos diplomas e cartas régios que ao assunto se referem. O próprio D. Dinis, por diploma de 1309, promove a construção de casas na zona de Almedina destinadas a serem arrendadas a estudantes e, de igual modo, incentiva os proprietários de casas a arrendá-las e a reconstruírem ou repararem as que estão ruinosas, com o mesmo fim.

Ora, face a tal insuficiência de alojamento e, também, face à proverbial magra bolsa do estudante, mandam a lógica e a razão, admitir que tais casas, uma vez dadas de renda, seriam partilhadas, todas e cada uma, por vários escolares. Por outro lado, se, de acordo com o estabelecido pelos diplomas régios, os estudantes tinham acesso privilegiado à aquisição de mantimentos — carne, pescado, pão e outros bens de primeira necessidade — acreditamos que aproveitariam bem tais privilégios. E, se partilhavam uma mesma morada com outros condiscípulos, mais fácil e menos oneroso seria partilharem também as refeições confecionadas com os mantimentos adquiridos individual ou coletivamente.

Se tais aspetos de ordem económica são fundamentais na génese incipiente destas pequenas células comunitárias de estudantes, não o serão menos os aspetos de ordem psicológica, cultural, social e moral. Desenraizados do ambiente familiar e do seu meio social de origem, os escolares de Coimbra pensariam na melhor fórmula para minorar tais inconvenientes e, de acordo com a lógica, terão aderido de forma espontânea ao viver comunitário, compensatório a todos os níveis. A vida em comum atenua a situação de desenraizamento, torna-se mais agradável pelo convívio que possibilita, cria laços de solidariedade e interdependência que conduzem à defesa de direitos e da integridade física e moral, contra intrusões externas e adversas e, ainda, permite a troca de conhecimentos e experiências entre os membros da comunidade. É esta a nossa perspetiva acerca da génese das “Repúblicas”. E, se é verdade que o apelativo “República” é recente, remontando aos primórdios do Século XIX, não é menos verdade que esta singular maneira de viver comunitária, com toda a evolução de séculos, chegou, desde o tempo do primitivo “Estudo Geral”, aos nossos dias.


Quando D. João III assumiu o propósito de estabelecer definitivamente a Universidade em Coimbra, tomou, também ele, todas as providências no sentido de que fossem dados aos escolares a necessária morada e os mantimentos bastantes, para que a sua vida em Coimbra, sem outras preocupações, pudesse ser votada aos estudos e à reflexão. Acerca das medidas tomadas com tal propósito, são bem elucidativos os alvarás régios de 12 de Julho, de 25 de Outubro, de 8 de Novembro de 1537 e de 18 de Julho de 1541.


O monarca não só incentiva a construção de casas concedendo largas isenções de foros, taxas e tributos, mas, ele próprio tomou a iniciativa de mandar construir doze moradas naquela que viria a ser a rua nova de S. Sebastião. Ora, a arquitetura de tais casas, com onze divisões (incluindo uma sala comum) distribuídas por dois pisos, possuindo um pequeno quintal com cisterna, em anexo, evidencia a preocupação de providenciar moradas do tipo comunitário, onde seria possível alojar de oito a dez estudantes. E não foi esquecida a sala para usos comunitários como as refeições e o convívio dos inquilinos, aquela que ainda hoje é a parte mais importante da casa, nas atuais “Repúblicas”.


Se a fase embrionária das “Repúblicas” remonta aos tempos dionísios, é D. João III quem, de alguma forma, com estas edificações, vai instituir as “primeiras repúblicas”, isto é, comunidades de estudantes que partilham a mesma casa, fruindo de igualdade de condições e comungando, eventualmente, de uma mesma refeição. É, também, com D. João III, que surgem em Coimbra novas possibilidades de alojamento e de vida comunitária. Falamos dos colégios que, sempre acompanhados da solicitude régia, começam a proliferar na cidade, nesta época. Se, na generalidade, eram propriedade de Ordens Religiosas, para que os seus membros viessem estudar na Universidade, havia também os Colégios das Ordens Militares e os Colégios para clérigos pobres e para seculares. Os colégios absorveram, para além dos seus próprios membros, muitos outros estudantes que, em boa parte, não tinham recursos bastantes para estudar.

Se a tradição é construída por usos e costumes que se enraízam ao longo dos tempos e se o uso e o costume radicam na repetição de certas ações, foi com o advento dos colégios que nasceram muitas das práticas da administração de uma “República”.

Desde os tempos dionísios que alguns estudantes exerciam a atividade de taxadores de moradas que visavam a renda justa. Ora, muitos estudantes com parcos recursos foram admitidos nos colégios para prestar serviços à comunidade colegial onde eram designados por familiares. Viviam, regra geral, nos piores alojamentos e desempenhariam múltiplas tarefas, em regime de rotatividade e a par de outros escolares mais novos, como servir à mesa, arrumar a louça, acender as velas, fazer camas, varrer a casa, arrumar quartos, cozer pão, etc.. Possivelmente geririam também a dispensa, as compras, o refeitório, a cozinha, etc., como auxiliares dos colegiais.

Todas estas incumbências e atribuições terão influenciado, em muito, o modo de organizar, gerir, distribuir tarefas e fazer funcionar as comunidades de estudantes autogeridas.

Acerca deste assunto, e avançando no tempo, Ribeiro Sanches, em 1763, traça-nos o seguinte quadro: “Cada dois ou três estudantes têm uma ama, um e, às vezes, três criados;(…)”. Este autor estará a referir-se a pequenas comunidades de escolares com certo poder económico porque, outras comunidades haveria em que o número de estudantes seria bem superior. Uma análise cuidada dos registos de matrículas dá-nos, para esta época, um número médio de cinco residentes, nos casos de habitação partilhada. Todavia, Ribeiro Sanches introduz um novo elemento, a figura da “ama” que estará muito próxima da serviçal ou “servente” das “Repúblicas” do Século XX

São vários os autores que apontam o surgimento das “Repúblicas Coimbrãs” para o início do Século XIX; entre eles estão Teófilo Braga, Borges de Figueiredo e Amílcar Ferreira de Castro. Ora, efetivamente, se pensarmos apenas no apelativo “República”, ele terá surgido naquela época, remontando à revolução vintista e, mais particularmente, à implementação do Decreto de 28 de Maio de 1834, de Joaquim de António de Aguiar.

Na verdade, com a extinção dos colégios universitários e outras instituições de inspiração religiosa, foi vibrado um rude golpe no alojamento académico, reduzindo-se significativamente a oferta de morada para estudantes e professores, pois o decreto de extinção não foi acompanhado de qualquer política de realojamento ou oferta de alternativas. Deste modo, cresceu exponencialmente o número de estudantes à procura de alojamento e cresceu também, com isso, não só o número de casas arrendadas a estudantes, e, muito particularmente, o número de escolares por casa. Algumas destas comunidades integraram de oito a onze elementos.

Não é pois de admirar que seja esta a época sobre a qual mais se debruçam os investigadores que apontam este período como o do nascimento das “Repúblicas”, para minorar a crise de alojamento. Todavia, manda o bom-senso pensar que estas comunidades de estudantes não podem ter sido geradas espontaneamente numa dada época e pelo motivo específico que a marcou. Toda a organização interna de uma “República”, o espírito de grupo, o tipo de economia doméstica comunitária e todas as outras especificidades inerentes às “Repúblicas” não surgem por geração espontânea mas pelo acumular de experiências alicerçadas no uso, no costume e na tradição construídos ao longo de séculos. O que se disse dos tempos de D. Dinis e seus sucessores, da época de D. João III, etc., é fundamental para compreender toda a evolução que se verificou até ao Século XIX, no âmbito destas células familiares estudantis. Digamos que esta época tem a marcá-la alguns novos elementos na evolução das “Repúblicas”: Com a diminuição da oferta de alojamento, aumenta o número de comunidades de escolares a residir em casas arrendadas; o número de elementos de cada comunidade tem também um aumento tendencial; a organização interna, sofre alguns reajustamentos derivados dos novos tempos; surge o nome de “República”, muito apropriado também à época, e que deverá provir do facto de estas comunidades familiares terem um governo semelhante ao dos estados republicanos.
Nos seus aspetos essenciais pode dizer-se, que apesar de toda a evolução da sociedade portuguesa e, concomitantemente, da sociedade tradicional académica de Coimbra, as “Repúblicas Coimbrãs” mantiveram as características que presidiram às suas origens e, pelos séculos fora, outras adquiriram, frutos do uso, do costume e da tradição, constituindo, no seu todo, um edifício assente na organização, no funcionamento, na particularidade e na pluralidade. É toda esta ambiência de “Vida em República” que vimos encontrar já no Século XX e que vem ser perturbada na sua existência em finais da década de quarenta. Um novo e rude golpe se abate sobre o alojamento estudantil nesta época. A demolição de grande parte da “Alta” para construção dos novos edifícios da “Cidade Universitária” transformou-se numa situação tão grave que, em Fevereiro de 1948, foi mandada suspender a ordem que determinava o despejo urgente de todas as casas da “Alta” onde residiam estudantes. É que, sem alternativas imediatas, como poderiam os estudantes, em meio do ano, encontrar novas casas para onde pudessem transferir-se. Já o mesmo acontecera com o Decreto de Joaquim António de Aguiar. O parque habitacional não primava pelo excesso. Pelo contrário, as carências eram bem visíveis. Foi neste contexto e face aos graves problemas com que os estudantes se depararam que nasceu o “Conselho das Repúblicas”, um organismo, não de tutela, mas de aglutinação em torno do “Ideal Repúblico”, o qual procuraria responder às dificuldades das “Repúblicas”, no seu conjunto. Mas, do camartelo da “Alta” e de alguma dispersão por ele provocada, o ideal repúblico prevaleceu e, quase direi, reforçou-se. Depois de passada a tormenta, novas “Repúblicas” vieram a ser fundadas, ou não fosse este o mais tradicional modo da vida académica e o mais seguro baluarte das suas tradições.

Atualmente são cerca de trinta as “Repúblicas” existentes em Coimbra. E, se os tempos mudaram e a sociedade portuguesa sofreu grandes transformações, estas comunidades académicas, evoluindo embora, mantiveram-se idênticas a si mesmas, constituindo uma espécie de classe dentro da classe académica, com os seus problemas próprios, o seu espírito próprio e os seus interesses específicos.


* Museu Académico
Revista Rua Larga, edição nº19

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